O longa metragem “Deus e o Diabo
na Terra do Sol” faz parte de um movimento da cinematografia nacional que
surgiu no início da década de 60, denominado de “Cinema Novo”, do qual Glauber
Rocha foi um dos precursores. Essa revolução, com um discurso crítico e ousado
para a época, costuma ser resumida pela expressão “uma câmera na mão e uma
idéia na cabeça”. Como “Deus e o Diabo na Terra do Sol” foi produzido
anteriormente ao golpe militar no Brasil, ainda tratava das temáticas da
realidade rural, como seca, fome e miséria, representando a primeira dentre as
três fases do movimento: de 1960
a 1964, 1965
a 1967 e de 1968 a 1972. Glauber foi um diretor brasileiro
e para brasileiros, porém é mais conhecido no cenário internacional. Ele recebeu
mais prêmios em Cannes do que muitos diretores, até de maior renome como Martin
Scorsese, que não esconde sua admiração por Rocha.
Na obra, é evidente a influência
de algumas técnicas cinematográficas - como a ‘Nouvelle Vague Francesa’ –
resultando na incorporação de certos valores estéticos, como as cenas que
mesclam improvisos e dinamismo. Além disso, o filme vale-se de uma linguagem
própria e metafórica, tendo com conseqüência uma leitura crítica da realidade. As
influências artísticas da dramaturgia brasileira da época, como o Teatro de
Arena de São Paulo e o Teatro do Oprimido de Augusto Boal, também podem ser
observados, a exemplo da preferência por temas que incitem a reflexão sobre a
realidade do país, além da escolha por cenas executadas de forma improvisada,
com ritmo de peças teatrais e os movimentos típicos dessas encenações.
Glauber conduziu com muita
originalidade esse filme, de temática aparentemente simples, ao contar a
história de vida de um sertanejo envolvido pela miséria e fome do sertão que,
sem qualquer expectativa de vida, fica literalmente entre a cruz e a espada (metaforizada
na cena em que Corisco
e Satanás estão assaltando a casa onde se realizava um casamento), entre “Deus”
e o “Diabo”, evocando a alienação religiosa e a violência do movimento cangaceiro
em que vive o povo do sertão nordestino.
"Vou
contar uma história, na verdade, é imaginação. Abra bem os seus olhos pra
enxergar com atenção. É coisa de Deus e Diabo, lá nos confins do sertão.”
Esta frase retrata bem o conteúdo
do filme. Primeiro é preciso notar que se trata de uma produção inteiramente
brasileira, pois mostrano decorrer de sua trama, aspectos e personagens típicos
do nordeste brasileiro, bem como elementos de sua cultura. Vemos ao fundo uma
paisagem típica do sertão, com carcaças e terrenos pedregosos. Até a trilha sonora é nacional, com música de
Villa-Lobos, compositor que Glauber não esconde a paixão, e cordéis escritos
pelo próprio diretor.
O filme conta a história de um
casal sertanejo, Manoel e Rosa, que tentam sobreviver às dificuldades do
sertão. Manoel (Geraldo Del Rey) é um vaqueiro que se revolta contra a
exploração imposta pelo coronel Moraes (Mílton Roda) e acaba matando-o numa
briga. Ele passa a ser perseguido por jagunços, o que faz com que fuja com sua
esposa Rosa (Yoná Magalhães). O casal se junta aos seguidores do beato
Sebastião (Lídio Silva), que promete o fim do sofrimento através do retorno a
um catolicismo místico e ritual. Esta parte do longa mostra com excelência o
fanatismo que se desenvolve com o desespero, onde homens e mulheres deixam para
traz suas vidas, seguindo um líder que exige provações, penitências e até mesmo
assassinatos em nome da fé. Porém ao presenciar a morte de uma criança, Rosa
mata o beato. Simultaneamente Antônio das Mortes (Maurício do Valle), um
matador de aluguel, que representa o braço armado e a força dos coronéis
nordestinos, extermina os seguidores do beato, a serviço da Igreja Católica e
dos latifundiários da região. Neste momento do longa nota-se que os políticos e
religiosos não estão preocupados com a situação do sertanejo, apenas com o
poder. Apesar do serviço que presta, Antônio das Mortes é o único personagem
politicamente consciente da história.
Cego Júlio: É matando, Antônio? É matando que você ajuda seus
irmãos?
Antônio: [...] Eu não matei pelo dinheiro. Matei porque não posso viver descansado com essa miséria.
Antônio: [...] Eu não matei pelo dinheiro. Matei porque não posso viver descansado com essa miséria.
Cego Júlio: A culpa não é do povo, Antônio! A culpa não é do
povo!
Antônio: Um dia vai ter uma guerra maior nesse sertão. Uma guerra grande, sem a cegueira de Deus e do Diabo. E para que essa guerra comece logo eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco e depois morrer de vez, que nós somos tudo a mesma coisa.
Antônio: Um dia vai ter uma guerra maior nesse sertão. Uma guerra grande, sem a cegueira de Deus e do Diabo. E para que essa guerra comece logo eu, que já matei Sebastião, vou matar Corisco e depois morrer de vez, que nós somos tudo a mesma coisa.
No fim, Manoel e Rosa seguem em
direção ao mar, o qual representa a cidade e, consequentemente, uma nova vida.
Simbolicamente, o casal torna-se os milhares de sertanejos que abandonaram suas
vidas no Nordeste e foram para São Paulo, em busca de uma vida digna. Outro
aspecto importante foi o fato da película ser filmada em preto e branco, como
forma de enfatizar a dura vida do nordestino.
Percebe-se ainda a dualidade
entre os personagens. Em determinados momentos eles são bons, representando Deus,
e em outros momentos são maus, representando o Diabo. As figuras dramáticas
possuem valores como o amor, a bondade e a humildade, entretanto, em decorrência
dos seus sofrimentos, tornam-se capazes de matar na luta pela sobrevivência.
O cinema de Rocha é um desafio
estético e moral. Pergunta mais do que responde. Portanto, para o espectador
mediano, ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ pode tornar-se uma experiência
demasiado cansativa, contudo para aquele que se dispõe a engajar-se, muito mais
do que apenas imagens lhe será revelado.
A frase: “Uma guerra grande, sem
a cegueira de Deus e do Diabo”, sintetiza o filme, pois é o cidadão comum que
precisa agir, rebelar-se contra esse poder omisso do qual só presencia os
mandos do poder político e da religião e é obrigado a sofrer por seus
desmandos. Glauber põe as responsabilidades de mudança sobre o povo e, mais do
que dar-lhe direito à voz, clama a usá-la. Só assim o “sertão vai virar mar”.
Nessa época de greves em todo o Brasil, talvez, muitos deveriam assistir esta
obra-prima do cinema brasileiro para passar a entender como, realmente, criar
uma revolução.
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